Quase ministro
Texto-fonte:
Teatro de Machado de Assis, org. de João Roberto Faria,
São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
Publicada
originalmente na Semana Ilustrada,
Rio de Janeiro, 1864.
Esta comédia foi expressamente
escrita para ser representada em um sarau literário e artístico, dado a 22 de
novembro do ano passado (1862), em casa de alguns amigos na rua da Quitanda.
Os cavalheiros que se encarregaram
dos diversos papéis foram Os Senhores Morais Tavares, Manuel de Melo, Ernesto Cibrão, Bento Marques, Insley Pacheco, Artur Napoleão, Muniz Barreto e Carlos Schramm.
O desempenho, como podem atestar os que lá estiveram, foi muito acima do que se
podia esperar de amadores.
Pela representação da comédia se
abriu o sarau, continuando com a leitura de escritos poéticos e a execução de
composições musicais.
Leram composições poéticas os
Senhores: conselheiro José Feliciano de Castilho, fragmentos de uma excelente
tradução do Fausto; Bruno Seabra, fragmentos do seu poema Dom Fuas, do gênero humorístico, em que a sua musa se
distingue sempre; Ernesto Cibrão, uma graciosa e
delicada poesia — O Campo Santo; Doutor Pedro Luís — Os voluntários
da morte, ode eloqüente sobre a Polônia; Faustino de Novais, uns
sentidos versos de despedida a Artur Napoleão; finalmente, o próprio autor da
comédia.
Executaram excelentes pedaços de
música os Senhores: Artur Napoleão, A. Arnaud, Schramm e Wagner, pianistas; Muniz Barreto e Bernardelli, violinistas; Tronconi, harpista; Reichert, flautista; Bolgiani, Tootal, Wilmoth, Orlandini e Fernand, cantores.
A este grupo de artistas, é de
rigor acrescentar o nome do Senhor Leopoldo Heck,
cujos trabalhos de pintura são bem conhecidos, e que se encarregou de ilustrar o programa do sarau afixado na sala.
O sarau era o sexto ou sétimo dado
pelos mesmos amigos, reinando neste, como em todos, a franca alegria e convivência cordial a que davam lugar o bom gosto da direção e
a urbanidade dos diretores.
PERSONAGENS
LUCIANO MARTINS, deputado
DOUTOR SILVEIRA
JOSÉ PACHECO
CARLOS BASTOS
MATEUS
LUÍS PEREIRA
MÜLLER
AGAPITO
Ação — Rio de Janeiro.
Cena I
MARTINS, SILVEIRA
SILVEIRA
(entrando)
Primo Martins, abraça este
ressuscitado!
MARTINS
Como assim?
SILVEIRA
Não imaginas. Senta-te, senta-te.
Como vai a prima?
MARTINS
Está boa. Mas que foi?
SILVEIRA
Foi um milagre. Conheces aquele
meu alazão?
Ah! basta; história de cavalos...
que mania!
SILVEIRA
É um vício, confesso. Para mim não
há outros: nem fumo, nem mulheres, nem jogo, nem vinho; tudo isso que muitas
vezes se encontra em um só homem, reuni-o eu na paixão dos cavalos; mas que não
há nada acima de um cavalo soberbo, elegante, fogoso. Olha, eu compreendo
Calígula.
MARTINS
Mas, enfim...
SILVEIRA
A história? É simples. Conheces o
meu Intrépido? E um lindo alazão! Pois ia eu há pouco, comodamente
montado, costeando a praia de Botafogo; ia distraído, não sei em que pensava.
De repente, um tílburi que vinha em frente esbarra e tomba. O Intrépido espanta-se;
ergue as patas dianteiras, diante da massa que ficara defronte, donde saíam
gritos e lamentos. Procurei contê-lo, mas qual! Quando dei por mim rolava muito
prosaicamente na poeira. Levantei-me a custo; todo o corpo me doía; mas enfim
pude tomar um carro e ir mudar de roupa. Quanto ao alazão, ninguém deu por ele;
deitou a correr até agora.
MARTINS
Que maluco!
SILVEIRA
Ah! mas as comoções... E as folhas
amanhã contando o fato: "DESASTRE. — Ontem, o jovem e estimado
Dr. Silveira Borges, primo do talentoso deputado Luciano Alberto Martins,
escapou de morrer... etc.”. Só isto!
MARTINS
Acabaste a história do teu
desastre?
SILVEIRA
Acabei.
MARTINS
Ouve agora o meu.
SILVEIRA
Estás ministro, aposto!
MARTINS
Quase.
SILVEIRA
Conta-me isto. Eu já tinha ouvido filar
na queda do ministério.
MARTINS
Faleceu hoje de manhã.
SILVEIRA
Deus lhe fale n'alma!
MARTINS
Pois creio que vou ser convidado
para uma das pastas.
SILVEIRA
Ainda não foste?
MARTINS
Ainda não; mas a coisa já é tão
sabida na cidade, ouvi isto em tantas partes, que julguei dever voltar para
casa à espera do que vier.
SILVEIRA
Muito bem! Dá cá um abraço! Não é
um favor que te fazem; mereces, mereces... Ó primo, eu também posso servir em
alguma pasta?
MARTINS
Quando houver uma pasta dos alazões...
(batem palmas) Quem será?
SILVEIRA
Será a pasta?
MARTINS
Vê quem é. (Silveira vai à porta. Entra Pacheco)
Cena II
OS MESMOS E JOSÉ PACHECO
V. Exa. dá-me licença?
MARTINS
Pode entrar.
PACHECO
Não me conhece?
MARTINS
Não tenho a honra...
PACHECO
José Pacheco.
MARTINS
José...
PACHECO
Estivemos há dois dias juntos em casa do Bernardo. Fui-lhe apresentado por um colega da
câmara.
MARTINS
Ah! (a Silveira, baixo) Que
me quererá?
SILVEIRA
(baixo)
Já cheiras a ministro.
PACHECO
(sentando-se)
Dá licença?
MARTINS
Pois não! (senta-se)
PACHECO
Então que me diz à situação? Que
me diz à situação? Eu já previa isto. Não sei se teve a bondade de ler uns
artigos meus assinados — Armand Carrel. Tudo o que acontece hoje está lá anunciado.
Leia-os, e verá. Não sei se os leu?
MARTINS
Tenho uma idéia vaga.
PACHECO
Ah! pois então há de lembrar-se de
um deles, creio que é o IV, não, é o V. Pois nesse artigo está previsto o que
aconteceu hoje, tim tim por tim tim.
SILVEIRA
Então V.S. é profeta?
PACHECO
Em política ser lógico é ser
profeta. Apliquem-se certos princípios a certos fatos, a conseqüência é sempre
a mesma. Mas é mister que haja os fatos e os princípios...
SILVEIRA
V.S. aplicou-os?...
PACHECO
Apliquei, sim, senhor, e
adivinhei. Leia o meu V artigo, e verá com que certeza matemática pintei a
situação atual. Ah! ia-me esquecendo (a
Martins), receba V. Exa. os meus sinceros parabéns.
MARTINS
Por quê?
PACHECO
Não foi chamado para o ministério?
MARTINS
Não estou decidido.
PACHECO
Na cidade não se fala em outra
coisa. É uma alegria geral. Mas, por que não está decidido? Não quer aceitar?
MARTINS
Não sei ainda.
PACHECO
Aceite, aceite! É digno; e digo mais,
na atual situação, o seu concurso pode servir de muito.
MARTINS
Obrigado.
PACHECO
É o que lhe digo. Depois dos meus
artigos, principalmente o V, não é lícito a ninguém recusar uma pasta, só se
absolutamente não quiser servir o país. Mas nos meus artigos está tudo, é uma
espécie de compêndio. Demais, a situação é nossa; nossa, repito, porque eu sou
do partido de V. Exa.
MARTINS
É muita honra.
Uma vez que se compenetre da
situação, está tudo feito. Ora diga-me, que política pretende seguir?
MARTINS
A do nosso partido.
PACHECO
É muito vago isso. O que eu
pergunto é se pretende governar com energia ou com moderação. Tudo depende do
modo. A situação exige um, mas o outro também pode servir...
MARTINS
Ah!
SILVEIRA
(à parte)
Que maçante!
PACHECO
Sim, a energia é... é isso, a
moderação, entretanto... (mudando o tom) Ora, sinto deveras que não
tivesse lido os meus artigos, lá vem tudo isso.
MARTINS
Vou lê-los... Creio que já os li,
mas lerei segunda vez. Estas coisas devem ser lidas muitas vezes.
PACHECO
Não tem dúvida, como os
catecismos. Tenho escrito outros muitos; há doze anos que não faço outra coisa;
presto religiosa atenção aos negócios do estado, e emprego-me em prever as
situações. O que nunca me aconteceu foi atacar ninguém; não vejo as pessoas,
vejo sempre as idéias. Sou capaz de impugnar hoje os atos de um ministro e ir
amanhã almoçar com ele.
SILVEIRA
Vê-se logo.
PACHECO
Está claro!
MARTINS
(baixo a Silveira)
Será tolo ou velhaco?
SILVEIRA
Uma e outra coisa. (alto) Ora,
não me dirá, com tais disposições, por que não segue a carreira política? Por
que não se propõe a uma cadeira no parlamento?
PACHECO
Tenho meu amor próprio, espero que
ma ofereçam.
SILVEIRA
Talvez receiem ofendê-lo.
PACHECO
Ofender-me?
SILVEIRA
Sim, a sua modéstia...
Ah! modesto sou; mas não ficarei
zangado.
SILVEIRA
Se lhe oferecerem uma cadeira...
está bom. Eu também não; nem ninguém. Mas eu acho que se devia propor; fazer um
manifesto, juntar os seus artigos, sem faltar o V...
PACHECO
Esse principalmente. Cito aí boa
soma de autores. Eu, de ordinário, cito muitos autores.
SILVEIRA
Pois é isso, escreva o manifesto e
apresente-se.
PACHECO
Tenho medo da derrota.
SILVEIRA
Ora, com as suas habilitações...
PACHECO
É verdade, mas o mérito é quase
sempre desconhecido, e enquanto eu vegeto nos — a
pedidos dos jornais, vejo muita gente chegar a cumieira da fama. (a Martins) Ora diga-me, o que pensará V. Exa. quando eu lhe
disser que redigi um folheto e que vou imprimi-lo?
MARTINS
Pensarei que...
PACHECO
(metendo a mão no bolso)
Aqui lho trago. (tira um rolo
de papel) Tem muito que fazer?
MARTINS
Alguma coisa.
SILVEIRA
Muito, muito.
PACHECO
Então não pode ouvir o meu
folheto?
MARTINS
Se me dispensasse agora...
PACHECO
Pois sim, em outra ocasião. Mas em
resumo é isso; trato dos meios de obter uma renda três vezes maior do que a que
temos sem lançar mão de empréstimos, e mais ainda, diminuindo os impostos.
SILVEIRA
Oh!
PACHECO
(guardando o rolo)
Custou-me muitos dias de trabalho,
mas espero fazer barulho.
SILVEIRA
(à parte)
Ora espera... (alto) Mas
então, primo...
Ah! é primo de V. Exa.?
SILVEIRA
Sim, senhor.
PACHECO
Logo vi, há traços de família;
vê-se que é um moço inteligente. A inteligência é o principal traço da família
de V. Exas. Mas dizia...
SILVEIRA
Dizia ao primo que vou decididamente
comprar uns cavalos do Cabo magníficos. Não sei se os viu já. Estão na cocheira
do major...
PACHECO
Não vi, não senhor.
SILVEIRA
Pois, senhor,
são magníficos! É a melhor estampa que tenho visto, todos do mais puro
castanho, elegantes, delgados, vivos. O major encomendou trinta; chegaram seis;
fico com todos. Vamos nós vê-los?
PACHECO
(aborrecido)
Eu não entendo de cavalos. (levanta-se) Hão de dar-me licença. (a Martins) V. Exa. janta às cinco?
MARTINS
Sim, senhor, quando quiser...
Ah! hoje mesmo, hoje mesmo. Quero saber se aceitará ou não. Mas se quer um conselho de
amigo, aceite, aceite. A situação esta talhada para um homem como V. Exa. Não a
deixe passar. Recomendações a toda a sua família. Meus senhores. (da porta) Se
quer, trago-lhe uma coleção dos meus artigos?
MARTINS
Obrigado, cá os tenho.
PACHECO
Bem, sem mais cerimônia.
Cena III
MARTINS, SILVEIRA
MARTINS
Que me dizes a isto?
SILVEIRA
É um parasita, está claro.
MARTINS
E virá jantar?
SILVEIRA
Com toda a certeza.
MARTINS
Ora esta!
SILVEIRA
É apenas o começo; não passas
ainda de um quase-ministro. Que acontecerá quando o fores de todo?
MARTINS
Tal preço não vale o trono.
SILVEIRA
Ora, aprecia lá a minha filosofia.
Só me ocupo dos meus alazões, mas quem se lembra de me vir oferecer artigos
para ler e estômagos para alimentar? Ninguém. Feliz obscuridade!
MARTINS
Mas a sem-cerimônia...
SILVEIRA
Ah! querias que fossem acanhados?
São lestos, desembaraçados, como em suas próprias casas. Sabem tocar a corda.
MARTINS
Mas enfim, não há muitos como
este. Deus nos livre! Seria uma praga! Que maçante! Se não lhe falas em
cavalos, ainda aqui estava! (batem palmas)
Será outro?
SILVEIRA
Será o mesmo?
Cena IV
OS MESMOS, CARLOS BASTOS
BASTOS
Meus senhores...
MARTINS
Queira sentar-se. (sentam-se) Que deseja?
BASTOS
Sou filho das musas.
SILVEIRA
Bem, com licença.
MARTINS
Onde vais?
SILVEIRA
Vou lá dentro falar à prima.
MARTINS
(baixo)
Presta-me o auxílio dos teus
cavalos.
SILVEIRA
(baixo)
Não é possível, este conhece o Pégaso. Com licença.
MARTINS, BASTOS
BASTOS
Dizia eu que sou filho das
musas... Com efeito, desde que me conheci, achei-me logo entre elas. Elas me influíram
a inspiração e o gosto da poesia, de modo que, desde os mais tenros anos, fui
poeta.
MARTINS
Sim, senhor, mas...
BASTOS
Mal comecei a ter entendimento,
achei-me logo entre a poesia e a prosa, como Cristo entre o bom e o mau ladrão.
Ou devia ser poeta, conforme me podia o gênio, ou lavrador, conforme meu pai
queria. Segui os impulsos do gênio; aumentei a lista dos poetas e diminuí a dos
lavradores.
MARTINS
Porém...
BASTOS
E podia ser o contrário? Há alguém
que fuja a sua sina? V. Exa. não é um exemplo? Não se acaba de dar às suas
brilhantes qualidades políticas a mais honrosa sanção? Corre ao menos por toda
a cidade.
MARTINS
Ainda não é completamente exato.
Mas há de ser, deve ser. (depois
de uma pausa) A poesia e a política acham-se ligadas por um laço
estreitíssimo. O que é a política? Eu a comparo a Minerva. Ora, Minerva é filha
de Júpiter, como Apolo. Ficam sendo, portanto, irmãs. Deste estreito parentesco
nasce que a minha musa, apenas soube do triunfo político de V. Exa., não pôde
deixar de dar alguma cópia de si. Introduziu-me na cabeça a faísca divina,
emprestou-me as suas asas, e arrojou-me até onde se arrojava Píndaro. Há de me
desculpar, mas agora mesmo parece-me que ainda por lá ando.
MARTINS
(à parte)
Ora dá-se.
BASTOS
Longo tempo
vacilei; não
sabia se devia fazer uma ode ou um poema. Era melhor o poema, por oferecer um
quadro mais largo, e poder assim conter mais comodamente todas as ações grandes
da vida de V. Exa.; mas um poema só deve pegar do herói quando ele morre; e V.
Exa., por fortuna nossa, ainda se acha entre os vivos. A ode prestava-se mais,
era mais curta e mais própria. Desta opinião foi a musa que me inspirou a melhor composição que até hoje tenho feito. V. Exa. vai
ouvi-la. (mete a mão no bolso)
MARTINS
Perdão, mas agora não me é
possível.
BASTOS
Mas...
MARTINS
Dê cá; lerei mais tarde.
Entretanto, cumpre-me dizer que ainda não é cabida, porque ainda não sou
ministro.
BASTOS
Mas há de ser, deve ser. Olhe, ocorre-me
uma coisa. Naturalmente hoje à tarde já isso está decidido. Seus amigos e
parentes virão provavelmente jantar com V. Exa.; então no melhor da festa,
entre a pêra e o queijo, levanto-me eu, como Horácio a mesa de Augusto, e
desfio a minha ode! Que acha? é muito melhor, é muito melhor.
MARTINS
Será melhor não a ler; pareceria
encomenda.
BASTOS
Oh! Modéstia! Como assenta bem em
um ministro!
MARTINS
Não é modéstia.
BASTOS
Mas quem poderá supor que seja encomenda?
O seu caráter de homem público repele isso, tanto quanto repele o meu caráter
de poeta. Há de se pensar o que realmente é: homenagem de um filho das musas a
um aluno de Minerva. Descanse, conte com a sobremesa poética.
MARTINS
Enfim...
BASTOS
Agora, diga-me, quais são as
dúvidas para aceitar esse cargo?
MARTINS
São secretas.
BASTOS
Deixe-se disso; aceite, que é o
verdadeiro. V. Exa. deve servir o país. É o que eu sempre digo a todos... Ah!
não sei se sabe: de há cinco anos a esta parte tenho sido cantor de todos os
ministérios. É que, na verdade, quando um ministério sobe ao poder, há razões
para acreditar que fará a felicidade da nação. Mas nenhum a fez; este há de ser
exceção: V. Exa. está nele e há de obrar de modo que mereça as bênçãos do
futuro. Ah! os poetas são um tanto profetas.
MARTINS
(levantando-se)
Muito obrigado. Mas há de me
desculpar. (vê o relógio) Devo sair.
BASTOS
Eu também saio e terei muita honra
de ir à ilharga de V. Exa.
MARTINS
Sim... mas, devo sair daqui a
pouco.
BASTOS
(sentando-se)
Bem, eu espero.
MARTINS
Mas é que eu tenho de ir para o
interior de minha casa; escrever umas cartas.
BASTOS
Sem cerimônia. Sairemos depois e
voltaremos... V. Exa. janta às cinco?
MARTINS
Ah! quer esperar?
BASTOS
Quero ser dos primeiros que o
abracem, quando vier a confirmação da notícia; quero antes de todos estreitar
nos braços o ministro que vai salvar a nação.
MARTINS
(meio zangado)
Pois fique, fique.
Cena VI
OS MESMOS, MATEUS
MATEUS
É um criado de V. Exa.
MARTINS
Pode entrar.
BASTOS
(à parte)
Será algum colega? Chega tarde!
MATEUS
Não tenho a honra de ser conhecido
por V. Exa., mas, em poucas palavras, direi quem sou...
MARTINS
Tenha a bondade de sentar-se.
MATEUS
(vendo Bastos)
Perdão; está com gente; voltarei
em outra ocasião.
MARTINS
Não, diga o que quer, este senhor
vai já.
BASTOS
Pois não! (à parte) Que remédio! (alto)
Às ordens de V. Exa.; até logo... não me demoro muito.
Cena VII
MARTINS, MATEUS
MARTINS
Estou às suas ordens.
MATEUS
Primeiramente deixe-me dar-lhe os
parabéns; sei que vai ter a honra de sentar-se nas poltronas do Executivo, e eu acho que é do meu dever congratular-me com a nação.
MARTINS
Muito obrigado. (à parte) É sempre a mesma cantilena.
MATEUS
O país tem acompanhado os passos
brilhantes da carreira política de V. Exa. Todos contam que, subindo ao
ministério, V. Exa. vai dar à sociedade um novo tom. Eu penso do mesmo modo.
Nenhum dos gabinetes anteriores compreendeu as verdadeiras necessidades da
pátria. Uma delas é a idéia que eu tive a honra de apresentar há cinco anos, e para cuja realização ando pedindo um
privilégio. Se V. Exa. não tem agora muito que fazer, vou explicar-lhe a minha
idéia.
MARTINS
Perdão; mas como eu posso não ser
ministro, desejava não entrar por ora no conhecimento de uma coisa que só ao
ministro deve ser comunicada.
MATEUS
Não ser ministro! V. Exa. não sabe
o que está dizendo... Não ser ministro é, por outros termos, deixar o país à
beira do abismo com as molas do maquinismo social emperradas... Não ser
ministro! Pois é possível que um homem, com os talentos e os instintos de V.
Exa. diga semelhante barbaridade? É uma barbaridade. Eu já não estou
MARTINS
Basta, não se aflija desse modo.
MATEUS
Pois não me hei de afligir?
MARTINS
Mas então a sua idéia?
MATEUS
(depois de limpar a testa com o lenço)
A minha idéia é simples como água.
Inventei uma peca de artilharia; coisa inteiramente nova; deixa atrás de si
tudo o que ate hoje tem sido descoberto. É um invento que põe na mão do país,
que o possuir, a soberania do mundo.
MARTINS
Ah! Vejamos.
MATEUS
Não posso explicar o meu segredo,
porque seria perdê-lo. Não é que eu duvide da discrição de V. Exa.; longe de
mim semelhante idéia; mas é que V. Exa. sabe que estas coisas têm mais virtude
quando são inteiramente secretas.
MARTINS
É justo; mas diga-me lá, quais são
as propriedades da sua peça?
MATEUS
São espantosas. Primeiramente, eu
pretendo denominá-la: o raio de Júpiter, para honrar com um nome majestoso a majestade do meu invento. A peça é montada
sobre uma carreta, a que chamarei locomotiva, porque não é outra coisa. Quanto
ao modo de operar é aí que está o segredo. A peça tem sempre um depósito de
pólvora e bala para carregar, e vapor para mover a máquina. Coloca-se no meio
do campo e deixa-se... Não lhe bulam. Em começando o fogo, entra a peça a
mover-se em todos os sentidos, descarregando bala sobre bala, aproximando-se ou
recuando, Segundo a necessidade. Basta uma para destroçar um exército; calcule
o que não será umas doze, como esta. É ou não a soberania do mundo?
MARTINS
Realmente, é espantoso. São peças
com juízo.
MATEUS
Exatamente.
MARTINS
Deseja então um privilégio?
MATEUS
Por ora... É natural que a
posteridade me faça alguma coisa... Mas tudo isso pertence ao futuro.
MARTINS
Merece, merece.
MATEUS
Contento-me com o privilégio... Devo
acrescentar que alguns ingleses, alemães e americanos, que, não
sei como, souberam deste invento, já me propuseram, ou a venda dele, ou uma
carta de naturalização nos respectivos países; mas eu amo a minha pátria e os
meus ministros.
MARTINS
Faz bem.
MATEUS
Está V. Exa. informado das
virtudes da minha peça. Naturalmente daqui a pouco é ministro. Posso contar com
a sua proteção?
MARTINS
Pode; mas eu não respondo pelos
colegas.
MATEUS
Queira V. Exa., e os colegas cederão.
Quando um homem tem as qualidades e a inteligência superior de V. Exa., não
consulta, domina. Olhe, eu fico descansado a este respeito.
Cena VIII
OS MESMOS, SILVEIRA
MARTINS
Fizeste bem
BASTOS
(baixo a Martins)
Então, deixas-me só?
MARTINS
(baixo)
Agüenta-te. (alto) Até sempre!
MATEUS
Às ordens de V. Exa.
Cena IX
MATEUS, SILVEIRA
MATEUS
Eu também me vou embora. É parente
do nosso ministro?
SILVEIRA
Sou primo.
MATEUS
Ah!
SILVEIRA
Então V. S. inventou alguma coisa?
Não foi a pólvora?
MATEUS
Não foi, mas cheira a isso...
Inventei uma peça.
SILVEIRA
Ah!
MATEUS
Um verdadeiro milagre... Mas não é
o primeiro; tenho inventado outras coisas. Houve um tempo em que me zanguei; ninguém
fazia caso de mim; recolhi-me ao silêncio, disposto a não inventar mais nada.
Finalmente, a vocação sempre vence; comecei de novo a inventar, mas nada fiz
ainda que chegasse à minha peça. Hei de dar nome ao século XIX.
Cena X
OS MESMOS, LUÍS PEREIRA
S. Exa. está em casa?
SILVEIRA
Não, senhor. Que desejava?
PEREIRA
Vinha dar-lhe os parabéns.
SILVEIRA
Pode sentar-se.
PEREIRA
Saiu?
SILVEIRA
Há pouco.
PEREIRA
Mas volta?
SILVEIRA
Há de voltar.
PEREIRA
Vinha dar-lhe os parabéns... e
convidá-lo.
SILVEIRA
Para quê, se não é curiosidade?
PEREIRA
Para um jantar.
SILVEIRA
Ah! (à parte) Está feito. Este oferece jantares.
PEREIRA
Está já
encomendado. Lá se encontrarão várias notabilidades do país. Quero fazer ao
digno ministro, sob cujo teto tenho a honra de falar neste momento, aquelas honras que o talento e a virtude merecem.
SILVEIRA
Agradeço
em nome dele esta prova...
PEREIRA
V.S. pode
até fazer parte da nossa festa.
SILVEIRA
É muito
honra.
PEREIRA
É meu
costume, quando sobe um ministério, escolher o ministro mais simpático, e
oferecer-lhe um jantar. E há uma coisa singular: conto os meus filhos por
ministérios. Casei-me em 50; daí para cá, tantos ministérios, tantos filhos.
Ora, acontece que de cada pequeno meu é padrinho um ministro, e fico eu assim
espiritualmente aparentado com todos os gabinetes. No ministério que caiu,
tinha eu dois compadres. Graças a Deus, posso fazê-lo sem diminuir as minhas
rendas.
SILVEIRA
(à
parte)
O que
lhe come o jantar é quem batiza o filho.
PEREIRA
Mas o nosso ministro, demorar-se-á
muito?
SILVEIRA
Não sei... ficou de voltar.
MATEUS
Eu peco licença para me retirar. (à
parte, a Silveira) Não posso ouvir isto.
SILVEIRA
Já se vai?
MATEUS
Tenho voltas que dar; mas logo cá
estou. Não lhe ofereço para jantar, porque vejo que S. Exa. janta fora.
PEREIRA
Perdão, se me quer dar a honra.
MATEUS
Honra... sou eu que a recebo...
aceito, aceito com muito gosto.
PEREIRA
É no Hotel Inglês, ás cinco horas.
Cena XI
OS MESMOS, AGAPITO, MÜLLER
SILVEIRA
Oh! entra, Agapito!
AGAPITO
Como estás?
SILVEIRA
Trazes parabéns?
AGAPITO
E pedidos.
SILVEIRA
O que é?
AGAPITO
Apresento-lhe o Sr. Müller,
cidadão hanoveriano.
(a Müller)
Queira sentar-se.
AGAPITO
O Sr. Müller chegou há quatro meses da Europa e deseja contratar o teatro
lírico.
SILVEIRA
Ah!
MÜLLER
Tenho debalde perseguido os
ministros, nenhum me tem atendido. Entretanto, o que eu proponho é um
verdadeiro negócio da China.
AGAPITO
(a Müller)
Olhe que não é ao ministro que
está falando, é ao primo dele.
MÜLLER
Não faz mal. Veja se não é negócio
da China. Proponho fazer cantar os melhores artistas da época. Os senhores vão
ouvir coisas nunca ouvidas. Verão o que é um teatro lírico.
SILVEIRA
Bem, não duvido.
AGAPITO
Somente, o Sr. Müller pede uma
subvenção.
SILVEIRA
É justo. Quanto?
MÜLLER
Vinte e cinco contos por mês.
MATEUS
Não é má; e os talentos do país?
Os que tiverem à custa do seu trabalho produzido inventos altamente
maravilhosos? O que tiver posto na mão da pátria a soberania do mundo?
AGAPITO
Ora, senhor! A soberania do mundo
é a música que vence a ferocidade. Não sabe a história de Orfeu?
MÜLLER
Muito bem!
SILVEIRA
Eu acho a subvenção muito
avultada.
MÜLLER
E se eu lhe provar que não é?
SILVEIRA
É possível, em relação ao esplendor
dos espetáculos; mas nas circunstâncias do país...
AGAPITO
Não há circunstâncias que procedam
contra a música... Deve ser aceita a proposta do Sr. Müller.
Sem dúvida.
AGAPITO
Eu acho que sim. Há uma porção de
razões para demonstrar a necessidade de um teatro lírico. Se o país é feliz, é
bom que ouça cantar, porque a música confirma as comoções da felicidade. Se o
país é infeliz, é também bom que ouça cantar, porque a música adoça as dores.
Se o país é dócil, é bom que ouça música, porque a música adormece os furores,
e produz a brandura. Em todos os casos, a música é útil. Deve ser até um meio
de governo.
SILVEIRA
Não contesto nenhuma dessas
razões; mas meu primo, se for efetivamente ministro, não aceitará semelhante proposta.
AGAPITO
Deve aceitar; mais ainda, se és
meu amigo, deves interceder pelo Sr. Müller.
SILVEIRA
Por quê?
AGAPITO
(baixo a Silveira)
Filho, eu namoro a prima-dona! (alto) Se me perguntarem quem é a prima-dona, não saberei responder; é um anjo e
um diabo; é a mulher que resume as duas naturezas, mas a
mulher perfeita, completa, única. Que olhos! Que porte! Que donaire! Que pé!
Que voz!
SILVEIRA
Também a voz?
AGAPITO
Nela não há primeiros ou últimos
merecimentos. Tudo é igual; tem tanta formosura, quanta graça, quanto talento!
Se a visses! Se a ouvisses!
MÜLLER
E as outras? Tenho uma andaluza... (levando os dedos á boca e beijando-os) divina! É a flor das andaluzas!
AGAPITO
Tu não conheces as andaluzas.
SILVEIRA
Tenho uma que me mandaram de
presente.
MÜLLER
Pois, senhor, eu acho que o
governo deve aceitar com ambas as mãos a minha proposta.
AGAPITO
(baixo a Silveira)
E depois, eu acho que tenho direito
a este obséquio; votei com vocês nas eleições.
SILVEIRA
Mas...
Não mates o meu amor ainda
nascente.
SILVEIRA
Enfim, o primo resolverá.
Cena XII
OS MESMOS, PACHECO, BASTOS
PACHECO
Dá licença?
SILVEIRA
(à parte)
Oh! aí está toda a procissão!
BASTOS
S. Exa.?
SILVEIRA
Saiu. Queiram sentar-se.
PACHECO
Foi naturalmente ter com os
companheiros para assentar na política do gabinete. Eu acho que deve ser a
política moderada. É a mais segura.
SILVEIRA
É a opinião de nós todos.
É a verdadeira opinião. Tudo o que
não for isto é sofismar a situação.
BASTOS
Eu não sei se isso é o que a
situação pede; o que sei é que S. Exa. deve colocar-se na altura que lhe
compete, a altura de um Hércules. O déficit é o leão de Neméia;
é preciso matá-lo. Agora se para aniquilar esse monstro, é preciso energia ou
moderação, isso não sei; o que sei é que é preciso talento e muito talento, e
nesse ponto ninguém pode ombrear com S. Exa.
PACHECO
Nesta última parte concordamos
todos.
BASTOS
Mas que moderação é essa? Pois faz-se jus aos cantos do poeta e ao cinzel do estatuário com
um sistema de moderação? Recorramos aos heróis... Aquiles foi moderado? Heitor
foi moderado? Eu falo pela poesia, irmã carnal da política, porque ambas são
filhas de Júpiter.
PACHECO
Sinto não ter agora os meus
artigos. Não posso ser mais claro do que fui naquelas páginas, realmente as
melhores que tenho escrito.
BASTOS
Ah! V. S. também escreve?
PACHECO
Tenho escrito vários artigos de
apreciação política.
BASTOS
Eu escrevo em verso; mas nem por
isso deixo de sentir prazer, travando conhecimento com V.S.
PACHECO
Oh! Senhor.
BASTOS
Talvez... Eu já disse que sou da
política de S. Exa.; e contudo ainda não sei (para falar sempre em Júpiter...)
ainda não sei se ele é filho de Júpiter Libertador ou Júpiter Stator; mas já sou da política de S. Exa.; e isto porque
sei que, filho de um ou de outro, há de sempre governar na forma indicada pela
situação, que é a mesma já prevista nos meus artigos, principalmente o V...
Cena XIII
OS MESMOS, MARTINS
BASTOS
Aí chega S. Exa.
MARTINS
Meus senhores...
SILVEIRA
(apresentando Pereira)
Aqui o
senhor vem convidar-te para jantar com ele.
MARTINS
Ah!
PEREIRA
É verdade; soube da sua nomeação e
vim, conforme o coração me pediu, oferecer-lhe uma prova pequena da minha
simpatia.
MARTINS
Agradeço a simpatia; mas o boato
que correu hoje, desde manhã, é falso... O ministério está completo, sem mim.
TODOS
Ah!
MATEUS
Mas quem são os novos?
MARTINS
Não sei.
PEREIRA
(à parte)
Nada, eu não posso perder um
jantar e um compadre.
BASTOS
(à parte)
E a minha ode? (a Mateus) Fica?
MATEUS
Nada, eu vou. (aos outros) Vou saber quem é o novo ministro
para oferecer-lhe o meu invento...
BASTOS
Sem incômodo, sem incômodo.
SILVEIRA
(a Bastos e Mateus)
Esperem um pouco.
PACHECO
E não sabe qual será a política do
novo ministério? É preciso saber. Se não for a moderação, está perdido. Vou averiguar
isso.
MARTINS
Não janta conosco?
PACHECO
Um destes dias... obrigado... até
depois...
SILVEIRA
Mas esperem: onde vão? Ouçam ao menos uma história. É pequena, mas conceituosa. Um dia anunciou-se
um suplício. Toda gente correu a ver o espetáculo feroz. Ninguém ficou em casa:
velhos, moços, homens, mulheres, crianças, tudo invadiu a praça destinada à
execução. Mas, porque viesse o perdão à última hora, o espetáculo não se deu e
a forca ficou vazia. Mais ainda: o enforcado, isto é, o condenado, foi em
pessoa à praça pública dizer que estava salvo e confundir com o povo as
lágrimas de satisfação. Houve um rumor geral, depois um grito, mais dez, mais
cem, mais mil romperam de todos os ângulos da praça, e uma chuva de pedras deu
ao condenado a morte de que o salvara a real clemência. — Por favor,
misericórdia para este. (apontando para Martins) Não tem culpa nem da
condenação, nem da absolvição.
PEREIRA
A que vem isto?
PACHECO
Eu não lhe acho graça alguma!
BASTOS
Histórias da carochinha!
MATEUS
Ora adeus! Boa tarde.
OS OUTROS
Boa Tarde.
Cena XIV
MARTINS e SILVEIRA
MARTINS
Que me dizes a isto?
SILVEIRA
Que hei de dizer! Estavas a
surgir... dobraram o joelho: repararam que era uma
aurora boreal, voltaram as costas e lá se vão em busca do sol... São
especuladores!
MARTINS
Deus te livre destes e de
outros...
SILVEIRA
Ah! Livra... livra. Afora os
incidentes como o Botafogo... ainda não me arrependi das minhas loucuras, como
tu lhes chamas. Um alazão não leva ao poder, mas também não leva à desilusão.
MARTINS
Vamos jantar.
FIM